"Escombros, pessoas enterradas em ruínas, milhões de desalojados. Catástrofes naturais como o terramoto no Haiti ou o furacão em Nova Orleães podem ser uma oportunidade para fazer nascer uma arquitectura melhor. Por todo o lado há arquitectos - e, já agora, também Brad Pitt - a trabalhar nisso."
in Jornal Publico, 2 de Abril 2010, por Alexandra Prado Coelho
""Geralmente não são os terramotos que matam as pessoas. São os edifícios." Pode parecer uma evidência, mas é sempre bom dizê-la em voz alta, acredita Robin Cross, que nos últimos tempos tem repetido várias vezes esta frase em declarações à imprensa. Director de projectos da Article 25, um grupo de arquitectos baseado em Londres e especializado em reconstrução em zonas afectadas por catástrofes, Cross viu de perto, em vários sítios do mundo, como as pessoas morreram debaixo dos edifícios - e percebeu como, em muitos casos, isso podia ter sido evitado.
Há muito a aprender com a experiência de um terramoto. E dois casos recentes mostram isso mesmo: enquanto no Haiti, em Janeiro, os edifícios, com uma baixa qualidade de construção, desabaram como castelos de cartas, esmagando as pessoas no interior, no Chile resistiram muito melhor e o número de mortos foi, por isso, muito inferior.
É precisamente esse o ponto a que Robin Cross quer chegar quando diz que são os edifícios que matam. Num texto disponível na Internet, o responsável do Article 25 dá alguns números: "No terramoto de Los Angeles em 1994 (magnitude de 6,7) houve 72 mortes e nove mil feridos, enquanto no de Caxemira em 2005 (magnitude de 7,6) houve 79 mil mortos e 106 feridos. No Haiti em 2010 (magnitude de 7) calculam-se 170 mil mortos e 250 mil feridos." E conclui que se há alguma coisa de bom que se possa retirar de uma tragédia como esta é que ela "deve ser uma oportunidade para construirmos melhor".
Mas será também uma oportunidade para fazer uma arquitectura diferente, menos "tradicional"? Para convidar arquitectos-estrela? Para introduzir preocupações ecológicas?
Não é logo a seguir a uma tragédia - como aquelas a que assistimos recentemente no Haiti e no Chile - que os arquitectos entram no terreno. Esses são os dias em que é preciso organizar a ajuda, fazer chegar comida, água, cobertores, arranjar abrigos provisórios. Só depois há espaço para grupos como o Article 25 ou o norte-americano Architecture for Humanity avançarem. E quando o fazem sabem que vão ficar durante muito tempo. Só em Port au Prince, a capital do Haiti, perto de dois milhões de pessoas perderam as casas.
A reconstrução de uma cidade devastada não se faz rapidamente. Aliás, um dos conselhos no site do Architecture for Humanity é este: "Quando estão a reconstruir não deixem os media estabelecer os prazos e as expectativas para a reconstrução." O autor do texto diz lembrar-se nitidamente de ver jornalistas de televisão sobre as ruínas de Nova Orleães devastada pelo furacão Katrina a anunciar que, dali por um ano, as famílias estariam de regresso às suas casas.
A realidade é muito diferente, como mostra o calendário do grupo: só a avaliação dos danos e o planeamento prévio demoram um ano, e a construção de novas habitações permanentes realiza-se entre o primeiro e o quinto ano da intervenção. E durante o processo surgem dúvidas, incertezas, opiniões divergentes. Nova Orleães é um bom exemplo disso.
Um convite de Brad Pitt
Wayne Curtis, da revista The Atlantic Monthly, fez no final do ano passado uma reportagem pelas ruas daquela cidade, passando por casas que correspondem a modelos diferentes propostos por arquitectos com diferentes visões do que deve ser a reconstrução. "Na ausência de uma forte liderança central, a reconstrução dividiu-se numa série de projectos vizinhos independentes", explica.
O mais mediático é o da organização não governamental (ONG) Make it Right, de Brad Pitt - 23 casas construídas até agora, sendo que o objectivo é a construção de 150 casas na zona de Nova Orleães, mais afectada pelo furacão. O actor propôs a vários ateliers de arquitectura conhecidos que desenhassem (gratuitamente) um protótipo de casa para as famílias que tinham ficado desalojadas. O "catálogo" com as diferentes casas é apresentado aos futuros moradores e estes escolhem a que mais lhes agrada. Há de tudo, até uma casa que flutua (do arquitecto Thom Mayne, do Morphosis) para a eventualidade de um novo furacão atingir a cidade.
O arquitecto chileno Alejandro Aravena (do Do-Thank Elemental) foi um dos convidados por Brad Pitt. O actor interessou-se pela proposta de Aravena para resolver o problema da habitação para pessoas de poucos recursos - a ideia é que os arquitectos construam metade de uma casa, garantindo a qualidade de construção e permitindo que os habitantes construam a outra metade mais tarde, quando tiverem condições económicas para isso.
Reconstruir, mantendo fielmente o que existia antes, não faz sentido, diz ao P2, por e-mail, Aravena, que não estava no Chile no dia do terramoto, mas que chegou logo em seguida e comprovou que os edifícios tinham conseguido resistir bastante bem (incluindo as meias-casas feitas pelo Elemental). E, no entanto, tem uma visão radical (sobretudo vinda de um arquitecto) do que deve ser feito. "No Chile somos mais geográficos do que históricos", explica. "É a natureza que nos atira ao chão e é a natureza que nos pode salvar. Este tipo de catástrofe recorda-nos que o nosso património é a natureza e não o que foi construído. No Chile não houve impérios. A nossa cultura construída é leve. Aqui é preciso eliminar a nostalgia, esquecer as intenções de reconstruir o que havia, tal como era, sempre e quando o que o substitua seja de qualidade."
Mas, acima de tudo, é preciso respeitar esse espaço da natureza, e não ter medo de deixar um vazio, diz Aravena. "Qualidade no Chile significa reconhecer que o construído ocupa um segundo plano em relação à natureza, à paisagem. A dívida das nossas cidades antes do terramoto era para com o espaço público. O terramoto e o maremoto destruíram parte das nossas cidades. Em vez de reconstruir aí arquitecturas de um ou outro tipo devíamos aproveitar a oportunidade para deixar esses espaços vazios, e deixar aí a natureza."
Quanto ao que tem realmente que ser reconstruído, não é importante definir se será melhor que seja um arquitecto famoso a fazê-lo ou um anónimo. "O que interessa é identificar com precisão o que é preciso resolver, qual é a pergunta que deve ser satisfeita. Se a resposta a essa pergunta vier de um grande nome ou de um anónimo é igual, desde que responda bem."
Mas há uma coisa sobre a qual Aravena não tem dúvidas: "Não há espaço para agendas criativas pessoais (isso de querer deixar uma marca ou marcar uma presença de autor), assim como para falta de qualidade profissional na resposta. É preciso muita qualidade profissional para responder rápido e à altura e nem sempre o anónimo pode ter esse know-how." E, claro, faz sentido aproveitar estas situações para introduzir preocupações com as questões ecológicas. "A sustentabilidade não é mais do que o uso rigoroso do sentido comum. Nunca é tarde para que o sentido comum seja o fio condutor das operações."
"Podemos estar num daqueles momentos", escreve Wayne Curtis na Atlantic Monthly, "com noções de design moderno, avanços nos materiais ecológicos e imperativos técnicos de sustentabilidade, todos convergindo para que seja dado um grande salto na arquitectura urbana." E segue o seu passeio pelas ruas de Nova Orleães, passando pelas casas do projecto Global Green (completamente ecológicas, produzindo a electricidade que consomem e recolhendo a água da chuva para reutilizar) e encontrando mais à frente Andrés Duany, um defensor de outro tipo de solução para a cidade.
Reconstruir Timor
Duany, um dos fundadores do Congress for New Urbanism, é um entusiasta do small town design (ele e a mulher são os autores da pequena cidade na Florida que serviu de cenário ao filme The Truman Show), o tipo de sítio sem arquitectura "de assinatura", em que casinhas anónimas se alinham em ruas paralelas. "Podemos passar por elas num passeio de bicicleta sem dar por isso", diz Curtis. Mas é um tipo de arquitectura que muitos criticam por ser pouco criativa, monótona, uma repetição do que já foi feito, sem acrescentar nada de novo.
Outro exemplo deste tipo de solução são as casas desenhadas por Marianne Cusato e que transformaram esta arquitecta até então desconhecida "numa das 50 pessoas mais influentes do mundo na indústria de construção de casas", de acordo com a revista Builder. As suas Katrina Cottage parecem as vivendas de estilo inglês do século XVII e, diz a autora, remetem para a "arquitectura vernacular" da região.
Embora seja um caso particular (trata-se, apesar de tudo, de uma operação de reconstrução no país mais poderoso do mundo), Nova Orleães é um bom exemplo do tipo de questões que surgem aos arquitectos perante um cenário de destruição.
Em cada país a experiência é diferente. E num país que está a nascer é uma experiência muito particular. Construir melhor foi o que tentaram fazer os arquitectos que reconstruíram Timor-Leste quando, em 1999, terminou a ocupação e os indonésios deixaram para trás um país incendiado e destruído, temporariamente sob administração da ONU. Pedro Reis era um desses arquitectos. "Houve uma primeira fase em que se distribuíram kits de reconstrução às pessoas", recorda. "Tratava-se de pôr uma cidade a funcionar e para isso tivemos que começar por reconstruir os edifícios públicos."
A opção foi, tanto quanto possível, usar tecnologias locais e mão-de-obra disponível em vez de trazer muitas empresas de fora para trabalhar no país. E, sobretudo, "melhorar a qualidade construtiva dos edifícios". Ou seja, explica Pedro Reis, "subir sempre um patamar" nessa qualidade e garantir que os edifícios seriam sustentáveis, "resistentes, robustos, com ventilação natural". Não procuraram uma "arquitectura timorense" à qual tivessem que ser fiéis (uma das questões polémicas em Nova Orleães - mas, pergunta Pedro Reis, "porquê fixar e replicar uma fase da evolução da cidade quando existem outras?"). "O que tentámos em Timor foi melhorar a arquitectura corrente."
Tinham dois anos para reconstruir um país - não podiam perder muito tempo com experiências ecológicas, ou "a testar sistemas solares", mas preocuparam-se com a sustentabilidade (pôr ou não ar condicionado, por exemplo, ponderando os custos de funcionamento no futuro).
A experiência de outro arquitecto português, Filipe Balestra, não é exactamente numa zona de catástrofe, mas em situações que podem levantar questões semelhantes: favelas no Brasil e bairros da lata na Índia. "É essencial absorver a cultura do país, cidade ou bairro onde acabámos de chegar antes de começar a desenhar seja o que for", defende. "Especialmente se essa comunidade estiver traumatizada por uma recente catástrofe natural. Vivemos num estilo de vida e economia preguiçosa - máximo lucro, mínimo esforço. Quer-se fazer tudo à pressa. Esquecemo-nos que ainda ontem éramos agricultores e que o ritmo da natureza é bem mais lento do que o da cidade. A arquitectura deve tentar desacelerar para se sincronizar com a natureza local."
Corbusier enganou-se?
Para Filipe Balestra, trabalhar em territórios como estes implica uma enorme disponibilidade para ouvir os habitantes e discutir com eles. "Arquitectura desenvolvida por uma comunidade, lentamente e de modo colectivo, vai ser bem mais apropriada do que outra desenvolvida somente por arquitectos num escritório qualquer." Por isso, "é sempre bom começar com uma ideia muito simples, que possa ser facilmente compreendida por qualquer um [e que] tem que atrair o maior número possível de pessoas para fazerem parte do projecto".
Um exemplo simples de como uma tragédia modifica a forma de olhar para os edifícios: em 2005, um terramoto no Paquistão deixou sem casa perto de 3,5 milhões de pessoas. Os arquitectos do Article 25 britânico foram para o terreno e, em colaboração com a Muslim Aid, conceberam um tipo de casas baseadas na arquitectura local mas com uma estrutura muito mais leve. "No exterior não parecem muito diferentes", explica um artigo no jornal britânico The Guardian, "mas, na eventualidade de outro terramoto, irão abanar em vez de colapsar inteiramente".
Tal como Pedro Reis e os arquitectos com quem trabalhou em Timor, também os do Article 25 dizem que o melhor é trabalhar a partir dos materiais e técnicas de construção locais, tentando sempre que possível melhorá-las. Só assim é que é possível que um dia, quando os arquitectos estrangeiros se forem embora, os construtores locais estejam preparados para construir melhor. É também a isso que Brad Pitt se refere quando diz que é preciso "transformar a tragédia em vitória". "O mais revoltante", diz Pitt sobre Nova Orleães, "é pensar que tudo isto podia ter sido evitado."
Por isso, o Architecture for Humanity criou a Open Architecture Network - uma rede de profissionais que podem partilhar ideias e oferecer projectos. Têm um manifesto de apresentação que começa com a frase de Le Corbusier "Arquitectura ou Revolução. A Revolução pode ser evitada", para dizer que o arquitecto francês estava enganado: "Mil milhões de pessoas vivem numa pobreza abjecta. Quatro mil milhões vivem em economias frágeis mas em crescimento. Uma em cada sete vive num bairro de lata. Em 2020 será uma em cada três. Não precisamos de escolher entre arquitectura e revolução. Aquilo de que precisamos é de uma revolução arquitectónica.""
Fonte:
http://jornal.publico.pt/noticia/03-04-2010/vamos-construir-edificios--que-nao-nos-matem013900.htm
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