Quando se projecta tragédia nas cidades, vai-se encontrar tragédia

in Jornal Público, 26.09.2010
Por Lurdes Ferreira


"Ex-prefeito da cidade brasileira de Curitiba e ex-governador do Paraná, Jaime Lerner é adepto de orçamentos curtos e aconselha os políticos e urbanistas a seguirem o seu exemplo: rapidez nas obras para evitar a própria burocracia, a insegurança e as discussões que se arrastam como os almoços de domingo das famílias grandes. Garante que a solução para uma cidade é "independente da escala ou dos recursos financeiros".

Jaime Lerner não acredita em soluções isoladas para as cidades. A sustentabilidade, os novos materiais, as novas formas de energia e a reciclagem são temas importantes, mas jogam em conjunto para o benefício das cidades, diz. O risco da ingenuidade é não ver, por exemplo, que "para sair de um edifício verde para outro edifício verde, vamos passar por uma cidade que não é verde".

O urbanista mais famoso do Brasil, filho de judeus polacos, com obras espalhadas por 84 cidades no mundo, deve a fama ao trabalho que fez em Curitiba como prefeito, nas décadas de 70 e 80, sobretudo com a criação de um sistema expresso de transportes públicos rodoviários. Foi mais tarde governador do Paraná, na década de 90. A revista Time diz que é um dos 25 pensadores mais influentes da actualidade.

As Nações Unidas prevêem que em 2030, 60 por cento da população mundial viverá nas cidades. Costuma dizer que as cidades não são problema, são soluções. Mas estes não são números assustadores para quem tem de planear o urbanismo?O problema é que existe hoje, no mundo inteiro, uma visão muito pessimista em relação ao futuro das cidades. Se se projecta tragédia, vai-se encontrar tragédia. Prefiro trabalhar para mudar tendências que não são desejáveis. Hoje é muito claro que as respostas têm de vir das cidades. Temos de ter um olhar mais generoso em relação a elas.

Porquê?Porque os grandes problemas que acontecem no mundo dizem respeito à vida das pessoas e as pessoas estão nas cidades. Se tivermos um olhar generoso em relação às cidades, teremos um olhar generoso em relação às pessoas. Além do mais, a cidade é o último refúgio da solidariedade.

Não é, pelo contrário, a ausência dessa solidariedade?
Mas é onde pode acontecer mais rapidamente. Veja, por exemplo, o problema da sustentabilidade. O mundo está preocupado com isso, as perspectivas são muito preocupantes, as pessoas estão conscientes, mas não sabem o que fazer.

Aí entra o papel dos planeadores?
Entra. Muitos acham que a sustentabilidade está em novos materiais - é importante, mas não é suficiente -, outros acham que está nos edifícios verdes e inteligentes. Eu duvido dessa inteligência. Não podemos ser ingénuos: para sair de um edifício verde para outro edifício verde vamos passar por uma cidade que não é verde. Outros acham que está nas novas formas de energia ou na reciclagem. Tudo isso é muito importante, mas não é suficiente. Se 75 por cento dos problemas de emissões de carbono têm origem nas cidades e se se vai agravar, então é nas cidades que podemos dar uma resposta mais efectiva - na concepção das cidades. Tenho uma obsessão no sentido de ensinar as crianças sobre a sustentabilidade; se as crianças entenderem, vão ensinar aos pais e vai ser mais fácil.

Quando vem à Europa, quais os principais problemas que encontra nas cidades europeias, por exemplo, Lisboa?As cidades europeias ainda são cidades melhores que as americanas, porque são exemplo desse conceito de proximidade entre o morar e o trabalhar. Triste é quando deixam de ser europeias e querem ser americanas. As cidades europeias serão tanto melhores quanto continuarem a ser europeias e, claro, com esses novos conceitos e novas preocupações. A cidade é a síntese da sociedade e a síntese da cidade é a rua. Nada do que o urbanismo contemporâneo inventou é melhor do que a rua tradicional ou a rua de que cada um de nós gosta mais. Nasci numa rua que era a rua da estação ferroviária, tinha uma linha do eléctrico, fábricas, assembleia legislativa, jornais e três emissoras de rádio, com orquestras e tudo. Tive essa sorte e ainda por cima ao lado da minha casa tive durante dez anos um circo. Eu ia à noite ao circo. Naquela rua tive o meu curso de realidade e de fantasia. Esta visão de morar numa cidade trouxe-me muita coisa e muito estímulo. Era a Rua Barão do Rio Branco, em Curitiba.

Diz muitas vezes que para mudar uma cidade não são precisos mais de três anos e foi isso que mostrou em Curitiba. Como é possível?Começar uma grande mudança é possível, mas temos de ser rápidos, primeiro porque temos de evitar a nossa própria burocracia. Segundo, porque a discussão precisa de ser feita. Uma vez discutido um assunto, votado, aprovado, tem de se iniciar imediatamente, porque se não é como um almoço de uma família muito grande ao domingo, nunca mais termina. E, terceiro, é para evitar a nossa própria insegurança. Às vezes temos boas ideias, mas começamos a pensar se é mesmo boa, o importante é começar. Inovar é começar e não precisamos de grandes recursos. A solução é independente da escala ou dos recursos financeiros. Basta montar uma boa equação e co-responsabilidade. E quando não se tem recursos até é melhor.

Costuma dizer que estimula a criatividadeÉ. Muito dinheiro atrapalha. Se quer criatividade, corte um zero do orçamento, se quer sustentabilidade corte dois zeros e se quer solidariedade, assuma a sua identidade, respeitando a diversidade dos outros.

A era Lula trouxe algo de novo ao desenvolvimento urbano no Brasil?
Trouxe uma melhoria de renda a toda a população, uma melhoria no consumo, mas esta melhoria precisa de ser acompanhada de melhoria de qualidade de vida nas cidades.

Ainda não é correspondente?Ainda não, mas avançou-se muito. É necessário que os governos federais tenham uma visão da cidade, porque não entendo uma cidade que separa a vida do trabalho. A mesma coisa num país: não há economia sem gente. Lula provou que é possível, que quando se melhora a qualidade de vida das pessoas, a economia melhora também. Tivemos a sorte de ter dois bons presidentes, Fernando Henrique Cardoso, que iniciou, e Lula, que abriu essa oportunidade. Foram dois presidentes importantes para o Brasil, mas quanto ao problema urbano, há muita coisa em que ainda estamos longe.

Quando diz que faz acupunctura urbana, o que faz ao certo?O planeamento demora tempo e é necessário, mas às vezes uma acção, uma ideia pontual pode criar uma nova energia que ajuda o processo de planeamento. Gosto de chegar a uma cidade, ficar 15 dias, deixar duas, três ideias e, se entenderem que são importantes, vão fazer acontecer. Se não gostarem, não se perde tempo nem dinheiro.

Dê exemplos dessa acupunctura.Uma das melhores acupuncturas aconteceu no Louvre: a pirâmide do Louvre resolveu problemas de séculos, não é necessária uma grande obra. O melhor parque de Nova Iorque tem 13 metros por 32. É o Paley Park, na Rua 53 Este. E assim vamos encontrar em muitas cidades, em Curitiba há a Ópera do Arame, a Universidade Livre do Meio Ambiente; em São Paulo, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa. A acupunctura cria novas energias, em todos os aspectos da vida urbana e em qualquer cidade. Já não me vejo em processos que levam três, quatro anos, não tenho tempo para isso. Não é a escala da cidade que me atrai. Embora hoje esteja a trabalhar no Rio de Janeiro, estamos a fazer um projecto que eu adoro, o Parque da Bossa Nova. Tenho o sonho de uma proposta que fizemos para São Paulo, que é uma cidade sem periferia, outro projecto no México, em Mazatlan, na ilha em frente ao casco histórico com carros de emissão zero e toda sustentável, para 150 mil pessoas. Estamos a trabalhar na República Dominicana, Luanda, Rússia.

É tudo projectos de acupunctura?
Sim, porque a acupunctura não pode demorar, se não, a agulha começa a doer, e também tem um efeito de demonstração muito importante.

Das 84 cidades que adoptaram o seu conceito de sistema público de autocarro expresso, lançado em Curitiba, qual considera que foi a adopção mais interessante?Bogotá.

Porquê?
Fizeram um trabalho excelente, a Transmillenium fez um grande trabalho. Isso também aconteceu na Cidade do México, Seul. Cidades da China e Nova Iorque começam a implantar sistemas de BRT (Bus Rapid Transit). Cada um vai aperfeiçoar e usar à sua maneira, mas a essência é a prioridade ao transporte público. Acredito que isso vai ajudar a resolver muito do problema da mobilidade, embora o fundamental seja morar mais perto do trabalho."


"Símbolo e pedagogia

Separar as pessoas na cidade é partir o casco à tartaruga.

Como surgiu a ideia de usar o casco da tartaruga para falar das cidades?
A tartaruga é vida, trabalho e movimento juntos. Ao mesmo tempo, tem o desenho de uma textura urbana. Assustador é imaginarmos o que aconteceria à tartaruga se lhe cortássemos o casco: viver aqui, trabalhar ali, ócio acolá. Morreria. É isso que estamos a fazer com as nossas cidades, separando as funções, separando as pessoas por rendimento, vivendo cada vez mais em guetos de gente muito rica ou muito pobre, separando por idade, por religião. A cidade humana é a que mistura tudo, funções, rendimento, idade, religião. Muitos querem viver numa cidade fugindo da cidade, em condomínios fechados, muros cada vez mais altos. A cidade é vida e trabalho juntos. Os problemas das cidades de hoje são muito semelhantes: mobilidade, sustentabilidade e sociodiversidade, que é a tolerância, a convivência entre as pessoas.

Então como juntar as pessoas?
Com compromissos simples. Usar menos o automóvel. Não é não o usar, mas pelo menos nos itinerários de rotina usar o transporte público. As cidades vão ser obrigadas a isso. Quem hoje quer financiamento do Banco Mundial tem de provar a preocupação com o meio ambiente. Outro é separar o lixo. Recolher o lixo sem o separar contamina-se o que é reciclável e onde se vai encontrar destino final para isso? Podemos ter incineradoras que queimam tudo, mas gastam muita energia. Terceiro, importantíssimo, é viver mais perto do trabalho ou trazer o trabalho para mais perto de casa. Hoje, a grande revolução ocorre na redução da escala dos geradores de emprego. Os empregos estão mais nos serviços, nas pequenas indústrias. Mesmo as indústrias tradicionais da alimentação e do vestuário estão mais dissolvidas na cidade, o que é bom. Isso vai ser positivo para que as pessoas morem perto do trabalho. Quarto, é entender que a sustentabilidade é uma equação entre o que poupamos e o que desperdiçamos. Se desperdiçarmos zero, a sustentabilidade vai ao infinito.
"


"A experiência do Dock Dock

O futuro está num carro sem propriedade

Acha que o carro eléctrico pode resolver problemas nas cidades, numa altura em que também promove o Dock Dock?
Não basta substituir o motor do carro, de combustão interna para eléctrico. Primeiro, porque a energia tem de ser limpa, segundo, podemos reduzir a poluição, mas o congestionamento vai continuar e o consumo de energia continuará a ser grande. Embora acredite que o futuro está na superfície -não procuro provar qual o melhor sistema, se é o metro, o autocarro, táxi -, o segredo da mobilidade está em jamais disputar o mesmo espaço. Ou seja, o metro tem de ser inteligente, o autocarro tem de ser inteligente, o táxi tem de ser inteligente, a bicicleta tem de ser inteligente. Paris transformou o transporte de bicicleta num transporte público e o futuro está num carro sem propriedade.

Em partilha?
Sim, com um outro conceito. Eu não sou designer de carros, mas estamos a desenvolver - vamos no quinto protótipo - o mais pequeno carro do mundo, que é um quarto do tamanho do Smart, com metade da largura, metade do comprimento e eu consigo entrar. Não é só o tamanho e ser eléctrico, é o facto de ser um carro "docável". Por isso se chama Dock Dock. "Doca-se" e fica a carregar. Tem uma autonomia de 50 km e não dá mais de 25 km/hora. É menos perigoso, pode conviver com a bicicleta e com o peão. O futuro é por aí.

O Dock Dock foi já apresentado?
Foi apresentado no Rio, num grande encontro sobre mobilidade. Vamos apresentá-lo também na Bienal de Saint-Étienne, em Paris, em Novembro. Vamos dar uma volta em Paris no carro.

A ideia é que seja propriedade das câmaras?
Não necessariamente. Pode ser de empresas de energia, distribuidoras. As prefeituras, autarquias, terão de providenciar o espaço ou planear melhores condições de deslocação.

Considera que a combinação do Dock Dock com os outros meios de transporte pode tirar emissões às cidades?
Com certeza. Mas o carro não é o principal. O principal é o transporte público, o Dock Dock é um auxiliar de transporte público. O carro tradicional ficará para as viagens, para o lazer, para as coisas fora da rotina."



Fontes e imagem:
http://jornal.publico.pt/noticia/26-09-2010/quando-se-projecta-tragedia-nas-cidades-vaise-encontrar-tragedia-20273585.htm
http://jornal.publico.pt/noticia/26-09-2010/simbolo-e-pedagogia-20273592.htm
http://jornal.publico.pt/noticia/26-09-2010/a-experiencia-do-dock-dock-20273595.htm

Massa Crítica e Festa Crítica: 24 de Setembro, 2010

Massa Crítica : a partir das 18:00 no Marquês de Pombal
Festa Crítica : a partir das 21:00 nos Anjos

A Massa Crítica é uma sempre uma festa!

ESTE É MÊS DE ANIVERSÁRIO E, POR ISSO, A MASSA JUNTA-SE À FESTA PARA UMA GRANDE NOITE DE DIVERSÃO!!!! FESTA CRÍTICA COM JANTAR, DEPOIS DA MASSA CRÍTICA.

No ano passado fomos cerca de 200, este ano queremos ser 400. Venham participar numa festa diferente.

Lisboa - Anjos
Rua Regueirão dos Anjos, 69 (mapa)

CICLOFICINA - 19 de Setembro, 2010


"A próxima Cicloficina de Lisboa será no dia 19 de Setembro, Domingo, a partir das 15h, no jardim Fernando Pessa, junto ao Fórum Lisboa (Av. de Roma)."

"O que é a Cicloficina?
É uma iniciativa informal, e aberta a todos os que nela queiram colaborar. É um serviço de assistência técnica simples prestado à população ciclista, e funciona apoiada no tempo, dedicação e mais valias dos voluntários que a fazem acontecer.

Qual o objectivo da Cicloficina?
# 1 – Promoção do uso quotidiano da bicicleta, dando-lhe visibilidade.
# 2 – Animação da rua e da vida colectiva do local onde decorre a Cicloficina.
# 3 – Aumento das interacções e fortalecimento das relações da comunidade.
# 4 – Empoderamento dos utilizadores de bicicleta, ensinando-os a regular, ajustar, afinar e manter as suas bicicletas, de modo a aumentar a sua autonomia, a sua segurança e o seu conforto, com vista a fomentar um maior uso da bicicleta na cidade."
 
Fonte e imagem:
http://cicloficina.wordpress.com/2010/09/03/algumas-fotos-da-cicloficina-de-lisboa/

Green Fest - PLANTAR UMA ÁRVORE

"O projecto "Plantar uma árvore" estará presente no Green Fest 2010 de 10 a 17 de Setembro.

O Green Fest é o maior evento de sustentabilidade do país, celebrando o que de melhor se faz nas três vertentes: social, ambiental e económica.












A aposta nesta presença representa mais um mecanismo importante accionado no sentido de levar para a frente o objectivo de a 23 de Novembro, dia da floresta autóctone, fazer o maior número de plantações de espécies autóctones por todo o país, divulgando ao máximo a mensagem pelos mais de 25.000 visitantes esperados.

Contamos com o seu apoio, visite-nos, experimente, colabore, junte-se a nós!
Daremos mais novidades sobre a participação neste festival nos nossos canais web durante estes 7 dias.
Se nos visitar, utilize preferencialmente os transportes públicos, como por exemplo o comboio. A estação do Estoril fica a 5 minutos. Ou melhor ainda, será que nos consegue visitar de bicicleta? Comece já a treinar para a Semana Europeia da Mobilidade que terá lugar de 16 a 22 de Setembro!
Aproveite para assistir a uma ou várias das conferências e seminários do festival, em que personalidades de renome internacional nos falam de casos de sucesso ao nível da sustentabilidade.
Não perca este grande evento! Entrada Livre!

www.greenfestival.pt"

Fonte:
http://blog.plantarumaarvore.org/2010/09/projecto-plantar-uma-arvore-presente-no.html

Gente feliz sem carro

in Jornal Público, 05.09.2010,  por Cláudia Sobral e Pedro Rios

"O senso comum e as conhecidas insuficiências dos transportes públicos levam-nos a acreditar que somos mais livres se tivermos carro próprio. Mas há vidas que provam exactamente o contrário. Há quem não tenha viatura porque não quer. E que mesmo assim seja livre.



Portugal tem um parque automóvel "comparável ao alemão e ao dinamarquês sem termos meios para isso", diz o presidente da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, Manuel João Ramos. Em 2009 havia em Portugal perto de 4,5 milhões de veículos ligeiros de passageiros - mais um milhão do que dez anos antes. Em 1989 eram apenas 1,5 milhões. Em 1979 não chegavam a um milhão.

Os transportes públicos são débeis, a circulação de bicicletas como meio de transporte não é fácil. Pegamos no carro para tudo. "As cidades portuguesas são pouco sustentáveis. Não há proximidade entre a habitação e o trabalho que possibilite andar a pé ou de bicicleta", sublinha Ramos. "Neste momento anda a pé quem pode. Inverteu-se totalmente a situação. As pessoas ainda não perceberam, mas há um estigma em relação ao peão", afirma. "Hoje em dia as pessoas são taxistas de si próprias." Mas não é difícil encontrar quem, podendo, toma uma opção diferente. Eis sete histórias de quem decidiu remar contra a corrente.

A estudar as árvores
Estava em plena estrada, dentro de um carro, com as mãos ao volante sem saber conduzir. Era um pesadelo recorrente da escritora Hélia Correia, 61 anos. Nunca quis comprar um automóvel, mas tirou a carta de condução por achar que todos devem tirá-la. E livrou-se do pesadelo.

"Praticamente nunca conduzi, por isso não sei conduzir", admite. "Sempre andei a pé e gosto muito. Mesmo em Lisboa", diz. O transporte colectivo mais habitual para a escritora é o autocarro. "Gosto de entrar na primeira paragem e de sair na última, porque assim não tenho de estar com atenção às informações práticas", explica. "A viagem torna-se agradável porque é uma forma de liberdade, de contemplação. Infelizmente não consigo ler nos transportes rodoviários mas faço assim uma viagem de descoberta."

Hélia Correia divide o seu tempo entre uma casa em Benfica, Lisboa, e outra em Janas, Sintra. Em Lisboa vive perto dos transportes. "Para mim o metro é pertíssimo, mas vejo pessoas à espera de um autocarro que os leve à estação de metro que fica a cem metros dali", diz. "É um quarto de hora a pé. Devagarinho. A estudar o crescimento das árvores que já sei de cor. Conheço-as uma a uma."

Para ir até Janas, apanha um comboio, depois a camioneta. "Há muito poucas", conta. "A camioneta é muito mais alta do que um automóvel e aquilo que se vê é diferente. E vai devagarinho e vai parando. É um percurso maravilhoso", assegura. Quando cai a noite, a única forma de chegar a casa é de táxi. "Faço as contas à vida a partir do horário das camionetas", admite. E diz nunca se ter sentido condicionada pela opção de não ter automóvel. "Nem sequer recorro àquilo que é muito comum entre os meus raros amigos que não têm carro, que é pedir boleia. Faço uma gestão da minha autonomia conforme aquilo que me é oferecido."

Recorda os tempos em que dava aulas no Barreiro e vivia em Lisboa: "Tinha de apanhar autocarro, metro, barco e autocarro. Demorava à volta de duas horas." Nem aí pensou em ter carro? "Não. Às vezes ia ou voltava de boleia, mas nunca me imaginei no lugar do condutor de um carro, porque também enquanto se está em viagem ou se está com amigos - no barco, por exemplo, havia um grupo de amigos muito unido justamente porque tinha aquele tempo de barco - há sempre coisas boas que se tiram daí."

"Penso muitas vezes num escritor inglês do século XIX, Matthew Arnold, que tinha uma frase que é o meu lema: Andam tão entusiasmados com a rapidez. Para que é que se há-de querer ir de um lugar aborrecido a outro lugar aborrecido mais depressa?"

Conhecido dos táxis

É quase uma obrigação para pertencer à direcção do Museu de Serralves, brinca Ricardo Nicolau, adjunto do director. O primeiro director, Vicente Todolí, não conduzia, o actual, João Fernandes, e o ex-director adjunto, Ulrich Loock, também não.

"Não há nenhum taxista do Porto que não me conheça", garante Nicolau, 33 anos. A convivência com os taxistas permite-lhe um "mergulho sociológico no Portugal dos dias de hoje". É de táxi que costuma ir de casa, perto do centro comercial Bom Sucesso, até Serralves e para, já de noite, regressar ao lar.

Não sabe se nunca tirou a carta de condução por ter mau sentido de orientação ou se tem mau sentido de orientação porque nunca tirou a carta. "Disperso-me dentro de um T2", graceja. Não ter carta de condução está também ligado à "estranhíssima e total ausência de curiosidade no acto de conduzir". "Nunca gostei particularmente de carros e sempre me gostei de perder. É quando nos perdemos que encontramos alguma coisa", contrapõe. "Gosto muito de andar a pé. Não se conhecem sítios sem se andar a pé."

Quando, há quatro anos, mudou de Lisboa para o Porto, concluiu que na capital "é muito mais fácil não ter carro" e estar menos dependente de táxi, devido à maior escala do centro da cidade. "Em Lisboa, uma pessoa pode viver durante meses sem sair do centro", refere. À noite e aos fins-de-semana, torna-se complicado recorrer aos autocarros da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP), que reduzem a sua frequência.

Nas deambulações a pé, encontrou, por exemplo, os exemplares de arquitectura modernista que vinham referidos em guias da especialidade. "No Porto, a cada passo há arquitectura fabulosa", vinca o "apaixonado por arquitectura". Não ter carta de condução ajuda também a manter amizades - ou "inventar formas de controlar os amigos". É que nunca sabe quando precisará de uma boleia. "Estou a brincar, claro."
"O táxi não é um luxo"

Um táxi abranda do lado de lá da estrada. É Sam The Kid que chega - bem avisou que o táxi é um meio de transporte habitual. Vem do estúdio Nascer do Som, na Estefânia. O prédio onde vive com a mãe, em Chelas, Lisboa, não fica longe. Pelo caminho todos o cumprimentam - por Samuel. Aos 31 anos, o músico não tem carta de condução. Talvez nunca venha a ter. "Em Lisboa não é preciso", garante.

Movimenta-se, como diz, dentro dos limites da tarifa 1 do metro. "Conheço Portugal de Norte a Sul, as ilhas e os PALOP sem ter carro", afirma. "Quando tenho dinheiro para táxi, ando de táxi. Quando não tenho, ando de metro." A estação de Chelas fica apenas a dois minutos a pé destes prédios cor-de-rosa.

"Há pessoas que ainda vêem no táxi um luxo. Não acho que seja", prossegue. "Ter um carro é um luxo. Comprar um grande [sistema de] som para o carro é um luxo." A sua mãe não conduz e sempre andou de táxi. "Isso também me influenciou", admite. Não conduzir nunca lhe causou complicações. "Excepto numa altura em que os taxistas tinham medo de vir a Chelas", ressalva. "E quando tenho de estar no aeroporto às quatro da manhã, e o táxi nunca mais chega, claro que penso que se tivesse um carro era mais fácil."

Para o músico ter e não ter carro é um paradoxo. "Por um lado há a ideia de que um carro te dá muita liberdade", explica. "Por outro, não ter carro também. Podes sair à noite e não te preocupas com problemas de estacionamento, por exemplo." O que é que se perde por não ter carro? "O que é que se ganha", corrige Sam.

Uma licença por usar
Tem carta de condução, mas nunca lhe deu uso. De início, por falta de carro para praticar e, depois, porque perdeu a confiança de pegar no volante. O contexto ajudou: a directora do Goethe-Institut do Porto, Elisabeth Völpel, 54 anos, cresceu em Colónia, na Alemanha, e depois foi para Londres, Inglaterra, ambas cidades com "transportes públicos muito bons". No Porto, onde vive há 26 anos, as diferenças são muitas, mas, diz, há sinais de que as coisas estão a mudar, mesmo que lentamente. "Quando vim, ninguém respeitava as passadeiras. Agora, de vez em quando, há alguém que pára sem que seja preciso pisar a passadeira. Na Alemanha ou na Inglaterra, usoa passadeira sem olhar", exemplifica.

Elisabeth conhece os horários de várias linhas da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) de cor. O problema, lamenta, é à noite, quando fica até mais tarde no trabalho: há menos linhas e muito menos autocarros por hora. A única solução com alguma comodidade é o táxi. A bicicleta está fora de questão. "Em Aveiro faz sentido", diz, mas a dimensão e a orografia do Porto não facilitam. E as ciclovias recém-inauguradas não lhe inspiram segurança.

Não percebe a quantidade de carros existentes no Porto - "numa cidade não devia ser preciso ter carro" - e muito menos a política da STCP. "Irrita-me bastante os horários mudarem quando há férias da escola. Parece-me provinciano. O Porto faz-se de si próprio uma província. Em nenhuma cidade deste tamanho isto acontece", desabafa. "E depois as cidades queixam-se que toda a gente anda de carro."
Descobrir as cidades
Se tivesse um carro seria um Citroën DS (o famoso "Boca de Sapo") descapotável. "Como tenho esse sofá" - uma das duas poltronas azul petróleo onde nos sentámos - "ou como tenho esta tela" - aponta para uma que ocupa meia parede da exígua sala quase forrada de livros e de vinis. Para Jorge Cramez, cineasta, 47 anos, ter carro não compensa. É demasiado dispendioso para o uso que lhe dá. "Quando tinha passavam-se semanas sem que eu pegasse nele", conta. "E muitas vezes quando precisava dele não funcionava." Desfez-se dele.

Prefere calcorrear calçadas e avenidas de Lisboa. "Faço alguns quilómetros diários", assegura depois de ressalvar que nunca teorizou as suas caminhadas. O meio de transporte de eleição de Cramez é ele próprio. Para a Universidade Lusófona, no Campo Grande, onde dá aulas, vai de metro, mas volta a pé. Ainda são uns quilómetros daqui de casa, na rua Cidade de Manchester. Sempre que sai até tarde o esquema repete-se. Ora chama um táxi, ora anda e anda até chegar a casa. Sejam as horas que forem.

Por hábito não usa transportes públicos. Por vezes vai de eléctrico até Belém ou entra num comboio para visitaro pai, que vive em Cascais. "Mas saio na estação do Estoril e vou a pé até Cascais."

"O tempo de andar é um tempo de reflexão", explica. E o tempo que se perde? "Eu tenho todo o tempo do mundo. Não tenho um emprego das nove às cinco", responde. "Quando tenho assuntos importantes para tratar uso o metro."

"Nunca me passaria pela cabeça meter-me num carro para ir ao Chiado", afirma. "Pode até ser cómodo, mas chega-se lá e não se consegue estacionar." Não se revê na forma de viver a cidade das pessoas que não andam a pé. "As cidades conhecem-se a pé, ao misturarmo-nos com as pessoas. Somos muito malucos com os carros", critica. "Principalmente no Porto, onde as pessoas pegam no carro para ir tomar um café."

"Mas ainda agora andei sete meses a conduzir", admite. O carro era da produção do último filme que rodou. Sobre a carta de condução já tem outra opinião: é indispensável. Tirou-a já depois dos 20 anos. "Sem carta, não se arranja trabalho." Sempre que precisa do carro tem de pedir emprestado o do pai e ir buscá-lo a Cascais. Mas mesmo para viagens longas prefere o Intercidades, da CP. A menos que tenha de levar Pollock, o cão.

O que se perde por não ter automóvel? "Não sinto falta", assegura. "Mas às vezes, quando está um dia porreiro de Inverno, penso que se tivesse um carro podia ir ao Meco com o Pollock" - o dálmata que corre para cumprimentar as visitas mal a porta se abre. Pollock acordou com um problema. Vão agora para o veterinário, na praça do Chile. A pé.

De mãe para filho
Todos os dias, quando põe um pé fora de casa, na Rua da Boavista, no Porto, Guiomar Rosa tem de decidir: "Por que caminho sigo eu?". A arquitecta tem pela frente duas escolhas: um caminho "mais bonito", que passa pela Rua de Cedofeita e pelos Clérigos para descer, depois, até ao gabinete de arquitectura na Ribeira. Ou um mais directo, pela Rua do Almada, também com os seus atractivos ("lojas giras" com mobiliário vintage, por exemplo). É uma meia hora de caminho, a pé, mas o tempo não é desperdiçado. "Ando a pensar e a fazer projectos. Para mim, ir de carro seria perder tempo."

Estamos na Rua da Boavista, onde Guiomar decidiu, há três anos, viver. Ainda mal nos fizemos ao caminho (escolheu o "mais bonito") e já nos avisa: "Sempre odiei esta rua. Só passava de carro e o trânsito era horrível" (é uma das mais movimentadas ruas do Porto). Guiomar é uma orgulhosa cidadã não automobilizada. Andar a pé deu-lhe a conhecer a vizinhança. E a rua deixou de ser tão inóspita.

O metro "veio revolucionar" a vida desta arquitecta, que inventava pretextos para não tirar a carta de condução, apesar das sucessivas inscrições. Pura e simplesmente, "não gostava de conduzir".

Aos 45 anos, mesmo com a oferta de transportes públicos, continua a preferir andar a pé para chegar ao trabalho. De manhã, mentalmente, faz a agenda do dia; ao fim da tarde ou à noite, no regresso a casa, começa a "deixar de ser a arquitecta para ser a dona de casa e a mãe". Vantagem suplementar: "isto é o meu ginásio". As desvantagens, isto é, fazer percursos com distâncias maiores, são ultrapassadas com a boa vontade dos amigos e dos empreiteiros, que a levam às obras.

Caminhar é também uma vantagem profissional. Aponta para uma casa "muito bonita" junto ao Largo dos Lóios, mas que estaria quase oculta se passasse apenas de automóvel - veria apenas o supermercado do piso térreo. Mais à frente, fixa-se num portão que, aparentemente, dá acesso a um sistema de ruas interiores. Nestas voltas, já encontrou prédios devolutos, que sugeriu, depois, a pessoas interessadas em investir na sua recuperação.

Quando teve um filho, sentiu que um carro poderia fazer falta, mas acabou por conseguiu fazer a vida sem ele. Os hábitos transmitem-se: o filho, com 15 anos, é outro apaixonado pelas caminhadas e faz meia hora por dia para ir a pé para a escola.
Lugar para bicicletas
A bicicleta não é das melhores. A deputada do Bloco de Esquerda Rita Calvário, 32 anos, admite-o. Mas serve o propósito: "One less car!" ("menos um carro", em português), lê-se no autocolante sobre o quadro vermelho e preto. "Já tem alguns anos", diz ao soltar o cadeado que a prende no parque de estacionamento do Palácio de São Bento. "Foi oferecida. Não costumava usá-la muito." Mas isso foi até ter decidido fazer-se à estrada e ter percebido que andar de bicicleta em Lisboa não é a tarefa impossível que se imagina. Pelo contrário: é um meio de transporte "cómodo e rápido".

Rita Calvário vive do outro lado da cidade - no Alto de São João. De bicicleta, a distância resume-se a 20 ou 30 minutos porque consegue esgueirar-se pelos espacinhos vagos entre os automóveis. "Ultimamente tenho vindo sempre de bicicleta [para o Parlamento], excepto nos dias em que está muito calor." Nesses casos recorre aos autocarros. "Demoro meia hora ou 45 minutos, dependendo do trânsito. Lisboa é uma cidade com demasiados carros", critica, "e isso afecta os autocarros." Mas mesmo este meio de transporte é mais agradável do que um automóvel. Sempre há tempo para ler.

A cidade das sete colinas é para ciclistas? "As grandes avenidas de Lisboa são planas", responde a deputada, que leva a bicicleta à mão nas subidas mais íngremes. E há sempre vários caminhos possíveis. Uns com menos inclinação do que outros. "Existe a possibilidade de transportar bicicletas no metro, no comboio e até em quatro carreiras de autocarro." "De bicicleta ou a pé aprecia-se muito melhor a vista do que de carro", argumenta. "É um meio cómodo, barato, ecológico."

Mas Rita conduz e até tem um carro. Quase sempre parado por não ter "grande utilidade" em Lisboa. "Adquiri-o numa altura em que vivia no interior do concelho de Cascais, que tem transportes muito débeis", explica. "Chegava à noite à estação e tinha de esperar uma hora pelo autocarro", recorda. Quando passou a dispor de um automóvel conduzia apenas até à estação - a partir daí deslocava-se em transportes colectivos."


Fonte:
http://jornal.publico.pt/noticia/05-09-2010/gente-feliz-sem-carro-20141339.htm
Imagem:
http://www.fotosearch.com/UNN819/u18101253/

EMEL aluga bicicletas nos parques a partir de hoje Estacione num parque e pedale até ao emprego

"Deixe o carro num parque de estacionamento e siga o seu percurso de bicicleta. Esta é a proposta da Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa (EMEL), que lança hoje, por um período experimental de um ano, o serviço B"ina, que consiste no aluguer de bicicletas, disponíveis nalguns parques explorados pela EMEL.

Nesta fase, por se tratar ainda de um projecto-piloto, o aluguer de bicicletas poderá ser feito apenas por portadores de avenças mensais de estacionamento, a quem será emprestado um capacete e um colete reflector. Nos dias úteis o serviço está disponível entre as 9h00 e as 19h00 e tem um custo de dois euros para meio dia e 3,5 euros para o dia inteiro. Aos fins-de-semana a proposta é que levante a bicicleta na sexta-feira e a devolva segunda-feira de manhã, pagando para tal oito euros.

A empresa diz que quer "contribuir activamente para dinamizar soluções de mobilidade mais sustentáveis", oferecendo, por agora, apenas 12 bicicletas. Um número que, segundo admite Sérgio Azevedo, responsável pelos novos produtos, poderá crescer caso a procura o justifique.

Os veículos de duas rodas, com um peso aproximado de dez quilos e a vantagem de serem dobráveis, podem ser requisitados nos parques de estacionamento da EMEL de Corpo Santo, Calçada do Combro, Sete Rios, Portas do Sol e Parque Mayer. Estas infra-estruturas foram escolhidas, como explica Sérgio Azevedo, pela sua proximidade em relação à zona ribeirinha (uma das mais "propícias" em Lisboa à utilização de bicicletas) e de pistas cicláveis.

Segundo Sérgio Azevedo, o único custo que a EMEL terá com esta iniciativa será com a sua divulgação, já que os veículos vão ser cedidos pela empresa de engenharia e manutenção electromecânica Engelma. A ideia é que o serviço B"ina seja utilizado tanto para deslocações para o local de trabalho, onde as bicicletas podem ser facilmente arrumadas por serem dobráveis, como para viagens de lazer.

Por Inês Boaventura"

Fonte:
http://jornal.publico.pt/noticia/01-09-2010/emel-aluga-bicicletas-nos-parques-a-partir-de-hoje-estacione-num-parque-e-pedale-ate-ao-emprego-20121033.htm