Local Geographic: A vida inteira num passeio de bicicleta

Por Luísa Roubaud 

"Uma certa manhã, bem cedo, um ciclista perdia-se inexplicavelmente no regresso de uma incursão no campo, próximo do lugar onde habitava. Estávamos no dealbar da Primavera de 2009 e a natureza, depois das chuvas de Inverno, literalmente, explodia. Era Rui Horta, coreógrafo, então com 51 anos, quem pedalava através da semidomesticada planície alentejana; ali se estabelecera com a família, nos arredores de Montemor-o-Novo, após uma década no estrangeiro, para criar O Espaço do Tempo, o centro de pesquisa e criação situado no morro sobranceiro à vila, no quinhentista Convento da Saudação.
Algum tempo depois, o incidente servia de mote a uma esplêndida fábula sobre a existência e as suas vicissitudes. Com um habilíssimo conceito visual (eximiamente apoiado em tecnologias multimédia), um texto a fluir no horizonte alentejano e um intérprete assombroso, Horta realiza uma proeza em Local Geographic: converter as pequenas peripécias e cogitações íntimas daquele episódio, aparentemente trivial,numa performance empolgante e encantatória desde o primeiro instante.
Horta tinha entrevisto nesta peça a solo a ocasião para um regresso ao palco. Porém, aquele ano de 2009-10 estava a ser intenso: preparara duas estreias (Talk Show, em Outubro de 2009, e As Lágrimas de Saladino, em Março de 2010, no Centro Cultural de Belém) e sentia-se exausto. Abalançar-se a dirigir, e ele próprio interpretar, a última peça da trilogia proposta, enquanto artista associado do CCB naquela temporada, não se afigurava uma opção. Não assistiremos, por agora, ao retorno de um Horta sénior à interpretação. Porém, confrontados com a portentosa prestação do bailarino-actor Anton Skrzypiciel, seu alter-ego na peça, cúmplice e companheiro de jornada nas lides artísticas há já duas décadas, dificilmente conceberíamos decisão mais acertada.
Numa madrugada, no início de 2010, o toque do telefone despertava Skrzypiciel: Anton, preciso que te percas por mim”, dizia a voz de Horta do outro lado da linha. Rapidamente perceberemos estar no âmago de Local Geographic um sem-fim de vivências e histórias partilhadas. O título da peça, paráfrase e homenagem à National Geographic, memorável revista sobre natureza e viagens, alude, desde logo, à ideia de uma “geografia local”. Se esta reporta ao espaço físico da excursão de bicicleta, depressa se transformará numa alegoria sobre as deambulações da vida, e na cartografia de uma longa amizade.
É generoso o modo como é exposta a dimensão pessoal e as circunstâncias deste improvável mas duradouro cruzamento: por um insondável conluio do destino, dois cidadãos do mundo, procedentes de cantos opostos do globo, convergiriam em determinada hora e lugar, em Londres, no início da década de 1990. Nessa época, Rui Horta ainda não era o coreógrafo consagrado quando preparava, na capital britânica, audições para a que se tornaria na muito bem-sucedida companhia de dança S.O.A.P. (criada em Frankfurt, em 1991); entre Lisboa e Nova Iorque, desde os finais dos anos 1970, deixava atrás de si uma trajectória relevante no despontar da dança independente portuguesa, então insuflada pelos ventos favoráveis do pós-25 de Abril. Skrzypiciel, por seu turno, rumara de Melbourne à Europa nos anos 1980. Perseguia uma história de amor e levava por diante estudos em dança e artes dramáticas; invertia o trilho percorrido pelos seus ascendentes polacos, emigrados na Austrália no pós-guerra. Quando compareceu àquela audição em Londres, não suporia com isso iniciar um novo ciclo no seu roteiro de viajante incansável.
Mais tarde, sabê-lo-emos na peça, quando já compartiam as andanças coreográficas na taciturna e continental Frankfurt, descobriram uma afinidade: a nostalgia imensa do mar, ancorada na memóriadas respectivas infâncias na costa do Atlântico e do Pacífico, para ambos sinónimo do verbo “desanuviar”, quando a pressão do palco e a clausura das salas de ensaio viravam um sufoco. Num desses períodos, Skrzypiciel retira-se para o mar do sul da China e aí permanecerá durante quatro anos. Lá o descobriremos, corria o ano de 2003. Era outra persona, a ganhar a vida como instrutor de mergulho no Bornéu e na Tailândia, quando foi surpreendido por um e-mail de Horta. A proposta, um curto trabalho em Montemor, revelar-se-ia uma vez mais premonitória: meses depois, a catástrofe do tsunami assolava as paradisíacas ilhas Phi Phi (Tailândia). Uma coisa leva à outra, e três semanas transformaram-se em quase dez anos. Como se diz em português, “por cá foi ficando”. Só pode sentir-se um pouco português quem ouvimos falar assim do vinho alentejano, do aroma a rosmaninho num repasto de borrego, ou do íntimo prazer em regressar ao PicNic, “O rei das bifanas”, um certo cafezinho às portas da vila de Montemor. Contudo, é também o modo de ser português, contido e sinuoso, inventivo e subversor, a ser perscrutado com subtileza por este forasteiro inquieto e temporariamente assimilado, que tão portuguesmente se revela no seu olhar anglófono.
Amiúde, daremos por nós a convocar a literatura de viagens, enquanto acompanhamos as divagações do nosso homem, surgidas de ínfimas ou vastas percepções, físicas e mentais, enquanto pedala através do seu micro-itinerário virtual.
É inspirada a solução dramatúrgica encontrada para este intrincado enredo narrativo com várias escalas de tempo e espaço. Horta gostaria de ter sido arquitecto, e isso era já inteligível em peças anteriores. O conceito plástico e visual de Local é genial: uma projecção em grandes dimensões do Google View iluminará o chão da sala, com a verdejante vista da zona do passeio. Simultaneamente, num ecrã, desfilarão imagens da paisagem alentejana, tal como Skrzypiciel as captou, com uma câmara de vídeo incorporada no capacete de ciclista: primeiro, da auto-estrada, e depois, quando enveredou por atalhos de terra, seguindo as instruções do bloco de notas que lhe fornecera Horta.Em cena, o intérprete habitará um curioso ambiente 3D, algo devedor da estética dos videojogos e da (boa) stand-up comedy, e aí reconstituirá o pequeno périplo, num cativante e meditativo monólogo, revelando-se um prodigioso contador de histórias.
A envolvente cénica está prenhe de indícios de toda a trama: atente-se nos leves apontamentos sonoros; estantes com objectos caseiros; frascos de conserva, uma mesa, copos e uma garrafa de bom vinho da região; uma bicicleta e um baú de viagem opõem a ideia de partida à de uma domesticidade tranquila. Zoom in/zoom out: entre o filme e o google view, avistamos uma charca e um riacho; ou seguimos, num enorme mapa digital, a trajectória do coreógrafo de Portugal para a Alemanha; detemo-nos num monte em ruínas ou numa escola abandonada; divisamos vedações, sinalização, orifícios no solo (vestígios de rastos humanos e da fauna local); uma bifurcação no caminho (como encontrar o caminho de regresso?); flores selvagens e ervas aromáticas. A cada situação, um novo detalhe cénico, sonoro, uma nova ideia visual. Motivos para desfiar memórias e outras reflexões.
A meio do caminho, Skrzypiciel solicita uma consulta à Wikipedia a propósito do sobreiro alentejano (Quercus suber). Numa fracção de segundo, ei-la, disponível, numa enorme projecção a cobrir toda a vista do terreno. É incontornável o meta-comentário: a imediatez da avalanche informativa arrisca esmagar e desviar a experiência directa.
O nosso ciclista heterónimo reencontra-se com uma dimensão sensorial: as nuances da temperatura exterior, os odores, a sede, o esforço e o cansaço físico; o suceder das estações, os ciclos naturais e humanos. As impressões a antecederem qualquer elaboração cognitiva. O corpo ressurge aqui como instrumento primordial de conhecimento do mundo; Local afasta-se, todavia, de uma visão idealizada ou essencialista do homem ou da natureza. A peça é perpassada por um encantamento céptico: esta paisagem amansada é simultaneamente romântica e perversa; no modo como hoje divinizamos a natureza há algo que vai a par da misantropia contemporânea e da falência da fé.
Na criação artística, como no curso da vida, há lances afortunados e conjunções radiosas. Local é, na obra de Horta, um momento de epifania. Há circunstâncias que só se manifestam com a clareza das grandes revelações, quando o que damos por adquirido desaba à nossa volta e nos sentimos perdidos. O que se encontra, perde ou ganha a cada escolha permanecerá um enigma insondável; circular no mundo e o minúsculo movimento de uma erva a crescer são acontecimentos da mesma grandeza. Somos viajantes solitários numa rota desconhecida, e é essa condição, vulnerável e incerta, a inscrever-nos num todo maior. Local é sobre os instantes onde as escala microscópica e macroscópica se fundem, porque ambas tendem para o infinito. Não se trata, porém, de um obscuro exercício metafísico, mas de uma linguagem, cristalina e desafectada, a disparar certeira na nossa direcção; a um tempo, genuinamente contemporânea e intemporal.
Poder-se-ia argumentar estarmos aqui longe da dança. Não obstante, há uma respiração coreográfica a pairar entre imagens e texto, e no exemplar proveito retirado dos dispositivos tecnológicos. Reconhece-se, sobretudo, na relação fluente do corpo com o tempo e o espaço, a mão de um coreógrafo. É magistral a gestão das pausas: entre intérprete e espectadores, uma pulsação única, um jogo entre intimidade e distanciamento, de onde brotam ápices de instantânea filosofia.
No regresso do passeio, já refeito dos incidentes de percurso, Skrzypiciel detém-se a contemplar no ecrã o esplendoroso esvoaçar das cegonhas vigiando os seus ninhos no topo de uns quantos pinheiros. Liga-os a cumplicidade dos viajantes: como elas – vindas, talvez, de uma chaminé em Marraquexe ou de um poste de electricidade na Argélia –, atravessou o mundo até chegar aqui.
Local é sobre o que de universal existe em cada experiência particular, uma celebração das coisas simples e essenciais. Religião significa, etimologicamente, “re-ligar”. Local Geographic é, nesse sentido, uma peça intensamente espiritual."


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