in Jornal Público, 05.09.2010, por Cláudia Sobral e Pedro Rios
"O senso comum e as conhecidas insuficiências dos transportes públicos levam-nos a acreditar que somos mais livres se tivermos carro próprio. Mas há vidas que provam exactamente o contrário. Há quem não tenha viatura porque não quer. E que mesmo assim seja livre.
Portugal tem um parque automóvel "comparável ao alemão e ao dinamarquês sem termos meios para isso", diz o presidente da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, Manuel João Ramos. Em 2009 havia em Portugal perto de 4,5 milhões de veículos ligeiros de passageiros - mais um milhão do que dez anos antes. Em 1989 eram apenas 1,5 milhões. Em 1979 não chegavam a um milhão.
Os transportes públicos são débeis, a circulação de bicicletas como meio de transporte não é fácil. Pegamos no carro para tudo. "As cidades portuguesas são pouco sustentáveis. Não há proximidade entre a habitação e o trabalho que possibilite andar a pé ou de bicicleta", sublinha Ramos. "Neste momento anda a pé quem pode. Inverteu-se totalmente a situação. As pessoas ainda não perceberam, mas há um estigma em relação ao peão", afirma. "Hoje em dia as pessoas são taxistas de si próprias." Mas não é difícil encontrar quem, podendo, toma uma opção diferente. Eis sete histórias de quem decidiu remar contra a corrente.
A estudar as árvores
Estava em plena estrada, dentro de um carro, com as mãos ao volante sem saber conduzir. Era um pesadelo recorrente da escritora Hélia Correia, 61 anos. Nunca quis comprar um automóvel, mas tirou a carta de condução por achar que todos devem tirá-la. E livrou-se do pesadelo.
"Praticamente nunca conduzi, por isso não sei conduzir", admite. "Sempre andei a pé e gosto muito. Mesmo em Lisboa", diz. O transporte colectivo mais habitual para a escritora é o autocarro. "Gosto de entrar na primeira paragem e de sair na última, porque assim não tenho de estar com atenção às informações práticas", explica. "A viagem torna-se agradável porque é uma forma de liberdade, de contemplação. Infelizmente não consigo ler nos transportes rodoviários mas faço assim uma viagem de descoberta."
Hélia Correia divide o seu tempo entre uma casa em Benfica, Lisboa, e outra em Janas, Sintra. Em Lisboa vive perto dos transportes. "Para mim o metro é pertíssimo, mas vejo pessoas à espera de um autocarro que os leve à estação de metro que fica a cem metros dali", diz. "É um quarto de hora a pé. Devagarinho. A estudar o crescimento das árvores que já sei de cor. Conheço-as uma a uma."
Para ir até Janas, apanha um comboio, depois a camioneta. "Há muito poucas", conta. "A camioneta é muito mais alta do que um automóvel e aquilo que se vê é diferente. E vai devagarinho e vai parando. É um percurso maravilhoso", assegura. Quando cai a noite, a única forma de chegar a casa é de táxi. "Faço as contas à vida a partir do horário das camionetas", admite. E diz nunca se ter sentido condicionada pela opção de não ter automóvel. "Nem sequer recorro àquilo que é muito comum entre os meus raros amigos que não têm carro, que é pedir boleia. Faço uma gestão da minha autonomia conforme aquilo que me é oferecido."
Recorda os tempos em que dava aulas no Barreiro e vivia em Lisboa: "Tinha de apanhar autocarro, metro, barco e autocarro. Demorava à volta de duas horas." Nem aí pensou em ter carro? "Não. Às vezes ia ou voltava de boleia, mas nunca me imaginei no lugar do condutor de um carro, porque também enquanto se está em viagem ou se está com amigos - no barco, por exemplo, havia um grupo de amigos muito unido justamente porque tinha aquele tempo de barco - há sempre coisas boas que se tiram daí."
"Penso muitas vezes num escritor inglês do século XIX, Matthew Arnold, que tinha uma frase que é o meu lema: Andam tão entusiasmados com a rapidez. Para que é que se há-de querer ir de um lugar aborrecido a outro lugar aborrecido mais depressa?"
Conhecido dos táxis
É quase uma obrigação para pertencer à direcção do Museu de Serralves, brinca Ricardo Nicolau, adjunto do director. O primeiro director, Vicente Todolí, não conduzia, o actual, João Fernandes, e o ex-director adjunto, Ulrich Loock, também não.
"Não há nenhum taxista do Porto que não me conheça", garante Nicolau, 33 anos. A convivência com os taxistas permite-lhe um "mergulho sociológico no Portugal dos dias de hoje". É de táxi que costuma ir de casa, perto do centro comercial Bom Sucesso, até Serralves e para, já de noite, regressar ao lar.
Não sabe se nunca tirou a carta de condução por ter mau sentido de orientação ou se tem mau sentido de orientação porque nunca tirou a carta. "Disperso-me dentro de um T2", graceja. Não ter carta de condução está também ligado à "estranhíssima e total ausência de curiosidade no acto de conduzir". "Nunca gostei particularmente de carros e sempre me gostei de perder. É quando nos perdemos que encontramos alguma coisa", contrapõe. "Gosto muito de andar a pé. Não se conhecem sítios sem se andar a pé."
Quando, há quatro anos, mudou de Lisboa para o Porto, concluiu que na capital "é muito mais fácil não ter carro" e estar menos dependente de táxi, devido à maior escala do centro da cidade. "Em Lisboa, uma pessoa pode viver durante meses sem sair do centro", refere. À noite e aos fins-de-semana, torna-se complicado recorrer aos autocarros da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP), que reduzem a sua frequência.
Nas deambulações a pé, encontrou, por exemplo, os exemplares de arquitectura modernista que vinham referidos em guias da especialidade. "No Porto, a cada passo há arquitectura fabulosa", vinca o "apaixonado por arquitectura". Não ter carta de condução ajuda também a manter amizades - ou "inventar formas de controlar os amigos". É que nunca sabe quando precisará de uma boleia. "Estou a brincar, claro."
"O táxi não é um luxo"
Um táxi abranda do lado de lá da estrada. É Sam The Kid que chega - bem avisou que o táxi é um meio de transporte habitual. Vem do estúdio Nascer do Som, na Estefânia. O prédio onde vive com a mãe, em Chelas, Lisboa, não fica longe. Pelo caminho todos o cumprimentam - por Samuel. Aos 31 anos, o músico não tem carta de condução. Talvez nunca venha a ter. "Em Lisboa não é preciso", garante.
Movimenta-se, como diz, dentro dos limites da tarifa 1 do metro. "Conheço Portugal de Norte a Sul, as ilhas e os PALOP sem ter carro", afirma. "Quando tenho dinheiro para táxi, ando de táxi. Quando não tenho, ando de metro." A estação de Chelas fica apenas a dois minutos a pé destes prédios cor-de-rosa.
"Há pessoas que ainda vêem no táxi um luxo. Não acho que seja", prossegue. "Ter um carro é um luxo. Comprar um grande [sistema de] som para o carro é um luxo." A sua mãe não conduz e sempre andou de táxi. "Isso também me influenciou", admite. Não conduzir nunca lhe causou complicações. "Excepto numa altura em que os taxistas tinham medo de vir a Chelas", ressalva. "E quando tenho de estar no aeroporto às quatro da manhã, e o táxi nunca mais chega, claro que penso que se tivesse um carro era mais fácil."
Para o músico ter e não ter carro é um paradoxo. "Por um lado há a ideia de que um carro te dá muita liberdade", explica. "Por outro, não ter carro também. Podes sair à noite e não te preocupas com problemas de estacionamento, por exemplo." O que é que se perde por não ter carro? "O que é que se ganha", corrige Sam.
Uma licença por usar
Tem carta de condução, mas nunca lhe deu uso. De início, por falta de carro para praticar e, depois, porque perdeu a confiança de pegar no volante. O contexto ajudou: a directora do Goethe-Institut do Porto, Elisabeth Völpel, 54 anos, cresceu em Colónia, na Alemanha, e depois foi para Londres, Inglaterra, ambas cidades com "transportes públicos muito bons". No Porto, onde vive há 26 anos, as diferenças são muitas, mas, diz, há sinais de que as coisas estão a mudar, mesmo que lentamente. "Quando vim, ninguém respeitava as passadeiras. Agora, de vez em quando, há alguém que pára sem que seja preciso pisar a passadeira. Na Alemanha ou na Inglaterra, usoa passadeira sem olhar", exemplifica.
Elisabeth conhece os horários de várias linhas da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) de cor. O problema, lamenta, é à noite, quando fica até mais tarde no trabalho: há menos linhas e muito menos autocarros por hora. A única solução com alguma comodidade é o táxi. A bicicleta está fora de questão. "Em Aveiro faz sentido", diz, mas a dimensão e a orografia do Porto não facilitam. E as ciclovias recém-inauguradas não lhe inspiram segurança.
Não percebe a quantidade de carros existentes no Porto - "numa cidade não devia ser preciso ter carro" - e muito menos a política da STCP. "Irrita-me bastante os horários mudarem quando há férias da escola. Parece-me provinciano. O Porto faz-se de si próprio uma província. Em nenhuma cidade deste tamanho isto acontece", desabafa. "E depois as cidades queixam-se que toda a gente anda de carro."
Descobrir as cidades
Se tivesse um carro seria um Citroën DS (o famoso "Boca de Sapo") descapotável. "Como tenho esse sofá" - uma das duas poltronas azul petróleo onde nos sentámos - "ou como tenho esta tela" - aponta para uma que ocupa meia parede da exígua sala quase forrada de livros e de vinis. Para Jorge Cramez, cineasta, 47 anos, ter carro não compensa. É demasiado dispendioso para o uso que lhe dá. "Quando tinha passavam-se semanas sem que eu pegasse nele", conta. "E muitas vezes quando precisava dele não funcionava." Desfez-se dele.
Prefere calcorrear calçadas e avenidas de Lisboa. "Faço alguns quilómetros diários", assegura depois de ressalvar que nunca teorizou as suas caminhadas. O meio de transporte de eleição de Cramez é ele próprio. Para a Universidade Lusófona, no Campo Grande, onde dá aulas, vai de metro, mas volta a pé. Ainda são uns quilómetros daqui de casa, na rua Cidade de Manchester. Sempre que sai até tarde o esquema repete-se. Ora chama um táxi, ora anda e anda até chegar a casa. Sejam as horas que forem.
Por hábito não usa transportes públicos. Por vezes vai de eléctrico até Belém ou entra num comboio para visitaro pai, que vive em Cascais. "Mas saio na estação do Estoril e vou a pé até Cascais."
"O tempo de andar é um tempo de reflexão", explica. E o tempo que se perde? "Eu tenho todo o tempo do mundo. Não tenho um emprego das nove às cinco", responde. "Quando tenho assuntos importantes para tratar uso o metro."
"Nunca me passaria pela cabeça meter-me num carro para ir ao Chiado", afirma. "Pode até ser cómodo, mas chega-se lá e não se consegue estacionar." Não se revê na forma de viver a cidade das pessoas que não andam a pé. "As cidades conhecem-se a pé, ao misturarmo-nos com as pessoas. Somos muito malucos com os carros", critica. "Principalmente no Porto, onde as pessoas pegam no carro para ir tomar um café."
"Mas ainda agora andei sete meses a conduzir", admite. O carro era da produção do último filme que rodou. Sobre a carta de condução já tem outra opinião: é indispensável. Tirou-a já depois dos 20 anos. "Sem carta, não se arranja trabalho." Sempre que precisa do carro tem de pedir emprestado o do pai e ir buscá-lo a Cascais. Mas mesmo para viagens longas prefere o Intercidades, da CP. A menos que tenha de levar Pollock, o cão.
O que se perde por não ter automóvel? "Não sinto falta", assegura. "Mas às vezes, quando está um dia porreiro de Inverno, penso que se tivesse um carro podia ir ao Meco com o Pollock" - o dálmata que corre para cumprimentar as visitas mal a porta se abre. Pollock acordou com um problema. Vão agora para o veterinário, na praça do Chile. A pé.
De mãe para filho
Todos os dias, quando põe um pé fora de casa, na Rua da Boavista, no Porto, Guiomar Rosa tem de decidir: "Por que caminho sigo eu?". A arquitecta tem pela frente duas escolhas: um caminho "mais bonito", que passa pela Rua de Cedofeita e pelos Clérigos para descer, depois, até ao gabinete de arquitectura na Ribeira. Ou um mais directo, pela Rua do Almada, também com os seus atractivos ("lojas giras" com mobiliário vintage, por exemplo). É uma meia hora de caminho, a pé, mas o tempo não é desperdiçado. "Ando a pensar e a fazer projectos. Para mim, ir de carro seria perder tempo."
Estamos na Rua da Boavista, onde Guiomar decidiu, há três anos, viver. Ainda mal nos fizemos ao caminho (escolheu o "mais bonito") e já nos avisa: "Sempre odiei esta rua. Só passava de carro e o trânsito era horrível" (é uma das mais movimentadas ruas do Porto). Guiomar é uma orgulhosa cidadã não automobilizada. Andar a pé deu-lhe a conhecer a vizinhança. E a rua deixou de ser tão inóspita.
O metro "veio revolucionar" a vida desta arquitecta, que inventava pretextos para não tirar a carta de condução, apesar das sucessivas inscrições. Pura e simplesmente, "não gostava de conduzir".
Aos 45 anos, mesmo com a oferta de transportes públicos, continua a preferir andar a pé para chegar ao trabalho. De manhã, mentalmente, faz a agenda do dia; ao fim da tarde ou à noite, no regresso a casa, começa a "deixar de ser a arquitecta para ser a dona de casa e a mãe". Vantagem suplementar: "isto é o meu ginásio". As desvantagens, isto é, fazer percursos com distâncias maiores, são ultrapassadas com a boa vontade dos amigos e dos empreiteiros, que a levam às obras.
Caminhar é também uma vantagem profissional. Aponta para uma casa "muito bonita" junto ao Largo dos Lóios, mas que estaria quase oculta se passasse apenas de automóvel - veria apenas o supermercado do piso térreo. Mais à frente, fixa-se num portão que, aparentemente, dá acesso a um sistema de ruas interiores. Nestas voltas, já encontrou prédios devolutos, que sugeriu, depois, a pessoas interessadas em investir na sua recuperação.
Quando teve um filho, sentiu que um carro poderia fazer falta, mas acabou por conseguiu fazer a vida sem ele. Os hábitos transmitem-se: o filho, com 15 anos, é outro apaixonado pelas caminhadas e faz meia hora por dia para ir a pé para a escola.
Lugar para bicicletas
A bicicleta não é das melhores. A deputada do Bloco de Esquerda Rita Calvário, 32 anos, admite-o. Mas serve o propósito: "One less car!" ("menos um carro", em português), lê-se no autocolante sobre o quadro vermelho e preto. "Já tem alguns anos", diz ao soltar o cadeado que a prende no parque de estacionamento do Palácio de São Bento. "Foi oferecida. Não costumava usá-la muito." Mas isso foi até ter decidido fazer-se à estrada e ter percebido que andar de bicicleta em Lisboa não é a tarefa impossível que se imagina. Pelo contrário: é um meio de transporte "cómodo e rápido".
Rita Calvário vive do outro lado da cidade - no Alto de São João. De bicicleta, a distância resume-se a 20 ou 30 minutos porque consegue esgueirar-se pelos espacinhos vagos entre os automóveis. "Ultimamente tenho vindo sempre de bicicleta [para o Parlamento], excepto nos dias em que está muito calor." Nesses casos recorre aos autocarros. "Demoro meia hora ou 45 minutos, dependendo do trânsito. Lisboa é uma cidade com demasiados carros", critica, "e isso afecta os autocarros." Mas mesmo este meio de transporte é mais agradável do que um automóvel. Sempre há tempo para ler.
A cidade das sete colinas é para ciclistas? "As grandes avenidas de Lisboa são planas", responde a deputada, que leva a bicicleta à mão nas subidas mais íngremes. E há sempre vários caminhos possíveis. Uns com menos inclinação do que outros. "Existe a possibilidade de transportar bicicletas no metro, no comboio e até em quatro carreiras de autocarro." "De bicicleta ou a pé aprecia-se muito melhor a vista do que de carro", argumenta. "É um meio cómodo, barato, ecológico."
Mas Rita conduz e até tem um carro. Quase sempre parado por não ter "grande utilidade" em Lisboa. "Adquiri-o numa altura em que vivia no interior do concelho de Cascais, que tem transportes muito débeis", explica. "Chegava à noite à estação e tinha de esperar uma hora pelo autocarro", recorda. Quando passou a dispor de um automóvel conduzia apenas até à estação - a partir daí deslocava-se em transportes colectivos."
Fonte:
http://jornal.publico.pt/noticia/05-09-2010/gente-feliz-sem-carro-20141339.htm
Imagem:
http://www.fotosearch.com/UNN819/u18101253/
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