Quando se projecta tragédia nas cidades, vai-se encontrar tragédia

in Jornal Público, 26.09.2010
Por Lurdes Ferreira


"Ex-prefeito da cidade brasileira de Curitiba e ex-governador do Paraná, Jaime Lerner é adepto de orçamentos curtos e aconselha os políticos e urbanistas a seguirem o seu exemplo: rapidez nas obras para evitar a própria burocracia, a insegurança e as discussões que se arrastam como os almoços de domingo das famílias grandes. Garante que a solução para uma cidade é "independente da escala ou dos recursos financeiros".

Jaime Lerner não acredita em soluções isoladas para as cidades. A sustentabilidade, os novos materiais, as novas formas de energia e a reciclagem são temas importantes, mas jogam em conjunto para o benefício das cidades, diz. O risco da ingenuidade é não ver, por exemplo, que "para sair de um edifício verde para outro edifício verde, vamos passar por uma cidade que não é verde".

O urbanista mais famoso do Brasil, filho de judeus polacos, com obras espalhadas por 84 cidades no mundo, deve a fama ao trabalho que fez em Curitiba como prefeito, nas décadas de 70 e 80, sobretudo com a criação de um sistema expresso de transportes públicos rodoviários. Foi mais tarde governador do Paraná, na década de 90. A revista Time diz que é um dos 25 pensadores mais influentes da actualidade.

As Nações Unidas prevêem que em 2030, 60 por cento da população mundial viverá nas cidades. Costuma dizer que as cidades não são problema, são soluções. Mas estes não são números assustadores para quem tem de planear o urbanismo?O problema é que existe hoje, no mundo inteiro, uma visão muito pessimista em relação ao futuro das cidades. Se se projecta tragédia, vai-se encontrar tragédia. Prefiro trabalhar para mudar tendências que não são desejáveis. Hoje é muito claro que as respostas têm de vir das cidades. Temos de ter um olhar mais generoso em relação a elas.

Porquê?Porque os grandes problemas que acontecem no mundo dizem respeito à vida das pessoas e as pessoas estão nas cidades. Se tivermos um olhar generoso em relação às cidades, teremos um olhar generoso em relação às pessoas. Além do mais, a cidade é o último refúgio da solidariedade.

Não é, pelo contrário, a ausência dessa solidariedade?
Mas é onde pode acontecer mais rapidamente. Veja, por exemplo, o problema da sustentabilidade. O mundo está preocupado com isso, as perspectivas são muito preocupantes, as pessoas estão conscientes, mas não sabem o que fazer.

Aí entra o papel dos planeadores?
Entra. Muitos acham que a sustentabilidade está em novos materiais - é importante, mas não é suficiente -, outros acham que está nos edifícios verdes e inteligentes. Eu duvido dessa inteligência. Não podemos ser ingénuos: para sair de um edifício verde para outro edifício verde vamos passar por uma cidade que não é verde. Outros acham que está nas novas formas de energia ou na reciclagem. Tudo isso é muito importante, mas não é suficiente. Se 75 por cento dos problemas de emissões de carbono têm origem nas cidades e se se vai agravar, então é nas cidades que podemos dar uma resposta mais efectiva - na concepção das cidades. Tenho uma obsessão no sentido de ensinar as crianças sobre a sustentabilidade; se as crianças entenderem, vão ensinar aos pais e vai ser mais fácil.

Quando vem à Europa, quais os principais problemas que encontra nas cidades europeias, por exemplo, Lisboa?As cidades europeias ainda são cidades melhores que as americanas, porque são exemplo desse conceito de proximidade entre o morar e o trabalhar. Triste é quando deixam de ser europeias e querem ser americanas. As cidades europeias serão tanto melhores quanto continuarem a ser europeias e, claro, com esses novos conceitos e novas preocupações. A cidade é a síntese da sociedade e a síntese da cidade é a rua. Nada do que o urbanismo contemporâneo inventou é melhor do que a rua tradicional ou a rua de que cada um de nós gosta mais. Nasci numa rua que era a rua da estação ferroviária, tinha uma linha do eléctrico, fábricas, assembleia legislativa, jornais e três emissoras de rádio, com orquestras e tudo. Tive essa sorte e ainda por cima ao lado da minha casa tive durante dez anos um circo. Eu ia à noite ao circo. Naquela rua tive o meu curso de realidade e de fantasia. Esta visão de morar numa cidade trouxe-me muita coisa e muito estímulo. Era a Rua Barão do Rio Branco, em Curitiba.

Diz muitas vezes que para mudar uma cidade não são precisos mais de três anos e foi isso que mostrou em Curitiba. Como é possível?Começar uma grande mudança é possível, mas temos de ser rápidos, primeiro porque temos de evitar a nossa própria burocracia. Segundo, porque a discussão precisa de ser feita. Uma vez discutido um assunto, votado, aprovado, tem de se iniciar imediatamente, porque se não é como um almoço de uma família muito grande ao domingo, nunca mais termina. E, terceiro, é para evitar a nossa própria insegurança. Às vezes temos boas ideias, mas começamos a pensar se é mesmo boa, o importante é começar. Inovar é começar e não precisamos de grandes recursos. A solução é independente da escala ou dos recursos financeiros. Basta montar uma boa equação e co-responsabilidade. E quando não se tem recursos até é melhor.

Costuma dizer que estimula a criatividadeÉ. Muito dinheiro atrapalha. Se quer criatividade, corte um zero do orçamento, se quer sustentabilidade corte dois zeros e se quer solidariedade, assuma a sua identidade, respeitando a diversidade dos outros.

A era Lula trouxe algo de novo ao desenvolvimento urbano no Brasil?
Trouxe uma melhoria de renda a toda a população, uma melhoria no consumo, mas esta melhoria precisa de ser acompanhada de melhoria de qualidade de vida nas cidades.

Ainda não é correspondente?Ainda não, mas avançou-se muito. É necessário que os governos federais tenham uma visão da cidade, porque não entendo uma cidade que separa a vida do trabalho. A mesma coisa num país: não há economia sem gente. Lula provou que é possível, que quando se melhora a qualidade de vida das pessoas, a economia melhora também. Tivemos a sorte de ter dois bons presidentes, Fernando Henrique Cardoso, que iniciou, e Lula, que abriu essa oportunidade. Foram dois presidentes importantes para o Brasil, mas quanto ao problema urbano, há muita coisa em que ainda estamos longe.

Quando diz que faz acupunctura urbana, o que faz ao certo?O planeamento demora tempo e é necessário, mas às vezes uma acção, uma ideia pontual pode criar uma nova energia que ajuda o processo de planeamento. Gosto de chegar a uma cidade, ficar 15 dias, deixar duas, três ideias e, se entenderem que são importantes, vão fazer acontecer. Se não gostarem, não se perde tempo nem dinheiro.

Dê exemplos dessa acupunctura.Uma das melhores acupuncturas aconteceu no Louvre: a pirâmide do Louvre resolveu problemas de séculos, não é necessária uma grande obra. O melhor parque de Nova Iorque tem 13 metros por 32. É o Paley Park, na Rua 53 Este. E assim vamos encontrar em muitas cidades, em Curitiba há a Ópera do Arame, a Universidade Livre do Meio Ambiente; em São Paulo, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa. A acupunctura cria novas energias, em todos os aspectos da vida urbana e em qualquer cidade. Já não me vejo em processos que levam três, quatro anos, não tenho tempo para isso. Não é a escala da cidade que me atrai. Embora hoje esteja a trabalhar no Rio de Janeiro, estamos a fazer um projecto que eu adoro, o Parque da Bossa Nova. Tenho o sonho de uma proposta que fizemos para São Paulo, que é uma cidade sem periferia, outro projecto no México, em Mazatlan, na ilha em frente ao casco histórico com carros de emissão zero e toda sustentável, para 150 mil pessoas. Estamos a trabalhar na República Dominicana, Luanda, Rússia.

É tudo projectos de acupunctura?
Sim, porque a acupunctura não pode demorar, se não, a agulha começa a doer, e também tem um efeito de demonstração muito importante.

Das 84 cidades que adoptaram o seu conceito de sistema público de autocarro expresso, lançado em Curitiba, qual considera que foi a adopção mais interessante?Bogotá.

Porquê?
Fizeram um trabalho excelente, a Transmillenium fez um grande trabalho. Isso também aconteceu na Cidade do México, Seul. Cidades da China e Nova Iorque começam a implantar sistemas de BRT (Bus Rapid Transit). Cada um vai aperfeiçoar e usar à sua maneira, mas a essência é a prioridade ao transporte público. Acredito que isso vai ajudar a resolver muito do problema da mobilidade, embora o fundamental seja morar mais perto do trabalho."


"Símbolo e pedagogia

Separar as pessoas na cidade é partir o casco à tartaruga.

Como surgiu a ideia de usar o casco da tartaruga para falar das cidades?
A tartaruga é vida, trabalho e movimento juntos. Ao mesmo tempo, tem o desenho de uma textura urbana. Assustador é imaginarmos o que aconteceria à tartaruga se lhe cortássemos o casco: viver aqui, trabalhar ali, ócio acolá. Morreria. É isso que estamos a fazer com as nossas cidades, separando as funções, separando as pessoas por rendimento, vivendo cada vez mais em guetos de gente muito rica ou muito pobre, separando por idade, por religião. A cidade humana é a que mistura tudo, funções, rendimento, idade, religião. Muitos querem viver numa cidade fugindo da cidade, em condomínios fechados, muros cada vez mais altos. A cidade é vida e trabalho juntos. Os problemas das cidades de hoje são muito semelhantes: mobilidade, sustentabilidade e sociodiversidade, que é a tolerância, a convivência entre as pessoas.

Então como juntar as pessoas?
Com compromissos simples. Usar menos o automóvel. Não é não o usar, mas pelo menos nos itinerários de rotina usar o transporte público. As cidades vão ser obrigadas a isso. Quem hoje quer financiamento do Banco Mundial tem de provar a preocupação com o meio ambiente. Outro é separar o lixo. Recolher o lixo sem o separar contamina-se o que é reciclável e onde se vai encontrar destino final para isso? Podemos ter incineradoras que queimam tudo, mas gastam muita energia. Terceiro, importantíssimo, é viver mais perto do trabalho ou trazer o trabalho para mais perto de casa. Hoje, a grande revolução ocorre na redução da escala dos geradores de emprego. Os empregos estão mais nos serviços, nas pequenas indústrias. Mesmo as indústrias tradicionais da alimentação e do vestuário estão mais dissolvidas na cidade, o que é bom. Isso vai ser positivo para que as pessoas morem perto do trabalho. Quarto, é entender que a sustentabilidade é uma equação entre o que poupamos e o que desperdiçamos. Se desperdiçarmos zero, a sustentabilidade vai ao infinito.
"


"A experiência do Dock Dock

O futuro está num carro sem propriedade

Acha que o carro eléctrico pode resolver problemas nas cidades, numa altura em que também promove o Dock Dock?
Não basta substituir o motor do carro, de combustão interna para eléctrico. Primeiro, porque a energia tem de ser limpa, segundo, podemos reduzir a poluição, mas o congestionamento vai continuar e o consumo de energia continuará a ser grande. Embora acredite que o futuro está na superfície -não procuro provar qual o melhor sistema, se é o metro, o autocarro, táxi -, o segredo da mobilidade está em jamais disputar o mesmo espaço. Ou seja, o metro tem de ser inteligente, o autocarro tem de ser inteligente, o táxi tem de ser inteligente, a bicicleta tem de ser inteligente. Paris transformou o transporte de bicicleta num transporte público e o futuro está num carro sem propriedade.

Em partilha?
Sim, com um outro conceito. Eu não sou designer de carros, mas estamos a desenvolver - vamos no quinto protótipo - o mais pequeno carro do mundo, que é um quarto do tamanho do Smart, com metade da largura, metade do comprimento e eu consigo entrar. Não é só o tamanho e ser eléctrico, é o facto de ser um carro "docável". Por isso se chama Dock Dock. "Doca-se" e fica a carregar. Tem uma autonomia de 50 km e não dá mais de 25 km/hora. É menos perigoso, pode conviver com a bicicleta e com o peão. O futuro é por aí.

O Dock Dock foi já apresentado?
Foi apresentado no Rio, num grande encontro sobre mobilidade. Vamos apresentá-lo também na Bienal de Saint-Étienne, em Paris, em Novembro. Vamos dar uma volta em Paris no carro.

A ideia é que seja propriedade das câmaras?
Não necessariamente. Pode ser de empresas de energia, distribuidoras. As prefeituras, autarquias, terão de providenciar o espaço ou planear melhores condições de deslocação.

Considera que a combinação do Dock Dock com os outros meios de transporte pode tirar emissões às cidades?
Com certeza. Mas o carro não é o principal. O principal é o transporte público, o Dock Dock é um auxiliar de transporte público. O carro tradicional ficará para as viagens, para o lazer, para as coisas fora da rotina."



Fontes e imagem:
http://jornal.publico.pt/noticia/26-09-2010/quando-se-projecta-tragedia-nas-cidades-vaise-encontrar-tragedia-20273585.htm
http://jornal.publico.pt/noticia/26-09-2010/simbolo-e-pedagogia-20273592.htm
http://jornal.publico.pt/noticia/26-09-2010/a-experiencia-do-dock-dock-20273595.htm

1 comentário:

  1. Acha que o carro eléctrico pode resolver problemas nas cidades, numa altura em que também promove o Dock Dock?
    Não basta substituir o motor do carro, de combustão interna para eléctrico. Primeiro, porque a energia tem de ser limpa, segundo, podemos reduzir a poluição, mas o congestionamento vai continuar e o consumo de energia continuará a ser grande. Embora acredite que o futuro está na superfície -não procuro provar qual o melhor sistema, se é o metro, o autocarro, táxi -, o segredo da mobilidade está em jamais disputar o mesmo espaço. Ou seja, o metro tem de ser inteligente, o autocarro tem de ser inteligente, o táxi tem de ser inteligente, a bicicleta tem de ser inteligente. Paris transformou o transporte de bicicleta num transporte público e o futuro está num carro sem propriedade.

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