Jornal Público, 03.05.2009
"No princípio duma tarde de Janeiro de 1998, eu encontrava-me na casa dos meus avós, em Boliqueime, quando vi um descapotável amarelo subir a rampa duma colina em frente, e dele sair um jovem casal que se dirigiu a uma casa em ruínas que recentemente havia sido posta à venda. A imagem maravilhosa de um casal jovem à procura duma casa abandonada era demasiado envolvente. Fiquei a imaginar como iriam ser no futuro esses meus vizinhos, românticos, que se passeavam abraçados, e se viam desfocados, por entre as amendoeiras em plena floração. Não tardou, muito, porém, que não tivesse chegado uma terceira personagem - uma escavadora, que se pôs a abrir uma passagem no valado, pulverizando as pedras. E de lá, ou de outra máquina qualquer entretanto chegada, saíram umas pessoas com moto-serras e abateram as amendoeiras cujas copas estavam em flor. Devo dizer que não deixaram uma única em pé, mesmo aquelas que supostamente não estorvariam ninguém. Fazia frio. O descapotável desapareceu com o casal. Decorreram 11 anos, a ruína já passou de proprietário várias vazes, mas os troncos das amendoeiras ainda lá estão como naquele dia, e também está um montinho de terra cinzenta a atestar que alguém fez um furo artesiano para fazer prova de que ali havia água. Provavelmente, os seus proprietários actuais aguardarão pelo momento próprio em que seja assinado um projecto de trinta ou quarenta casinhas do tamanho de pombais, encaixadas umas nas outras, como se vêem ao longo da Estrada 125 e nos sítios mais improváveis.
De facto, sobre a deriva da edificação em Portugal, não vale a pena repetir o que há muito se sabe. Trinta e cinco anos volvidos após a instauração da Democracia, confirma-se o que está à vista - que nesta área, a da Arquitectura e do Urbanismo, como em outras, o país conheceu um desenvolvimento extraordinário, enriqueceu e liberalizou-se, mas nas suas estruturas profundas ainda não se democratizou. Se se tivesse liberalizado e democratizado, em doses e ritmos semelhantes, precisamente, o debate e o escrutínio público teriam atalhado a gestão dos interesses, e ao menos, por exemplo, entre a população, já se teria difundido a ideia de que a casa é de cada um mas a paisagem é de todos. E se a praça, o auditório, o pavilhão é para todos, em algum momento do processo não se pode dispensar de ouvir a opinião da comunidade. Ou dito de outro modo, embora sabendo como é complicado determinar o bom gosto e o mau gosto, e até mesmo o útil e o inútil, não podem ser tão poucos os que se interessam pelo património que à comunidade diz respeito, que tão poucos intervenham, e intervindo, que o facto não tenha consequência.
No caso do Algarve, a situação é particularmente sensível porque a sua primeira riqueza confunde-se com o valor da sua paisagem, e poucos serão aqueles que não sentem que o caminho que tem sido percorrido mereceria ter tido um outro rumo. O que não quer dizer que não se esteja a ponto de atingir uma nova consciência. Por alguma razão, a palavra requalificação atingiu, ultimamente, um significado tão relevante entre nós e se multiplicam as iniciativas de re-harmonização dos espaços públicos. Também começa a tornar-se claro, no que à Região do Sul se refere, que é preciso reconquistar a singularidade arquitectónica que foi sendo desperdiçada. Projectar e construir é sempre uma proposta de futuro, e envolve esquecimento. Vários tipos de esquecimento. Mas havia entre nós um património popular construído que não foi devidamente incorporado na passagem da cultura rural para a cultura de indústria do lazer, com perdas avultadas para o futuro. Dispomos de particularidades climáticas e ambientais únicas, que fizeram desenvolver uma atmosfera de interiores singular e que foi ignorada. Existe uma vegetação incrivelmente própria, uma tipologia de arvoredo único, que fornece elementos decorativos, e de estruturação muito próprios, e que não foi aproveitada. Até mesmo a construção acautelada em relação à linha do mar, durante as últimas décadas parece ter sido desconhecida. Só para dar alguns exemplos.
Mas é por isso que, nos dias de esperança, como este que hoje comemoramos, é gratificante verificar que há profissionais e proprietários que sabem inflectir a rota dos factos, sobretudo quando existem exemplos concretos que mostram à evidência como é possível construir sem ofender a Terra, que é possível criar estruturas modernas poeticamente arrojadas, sem ofender os traços tradicionais dominantes, que é possível manter o respeito pelo património construído, sem manifestar atavismo. Que é possível criar ambiente adaptado ao meio envolvente, sem resvalar para o casticismo ou falso tradicionalismo perverso.
É possível recuperar espaços antigos mantendo-lhes a memória, mas evitando o anquilosamento despropositado. E sobretudo, é possível - ou pelo menos parece ser possível - urbanizar subtraindo à densidade da habitação a superfície suficiente para criar espaços livres, verdes e abertos, que permitam uma ocupação condigna. É possível ser arrojado sem ser ostensivo, ser simples e estar ao nível das melhores criações arquitectónicas e urbanistas da Europa e do Mundo, sem copiar nem repetir.
Precisamente, as obras agora premiadas respondem a esse tipo de critérios. Elas, e muitas outras seleccionadas, e que só não foram distinguidas por uma questão de justiça relativa, ou por mera subjectividade do júri, confirmam o que nós sabemos - que existem dois Algarves. Que um deles se arrisca a ser, no futuro, um espaço suburbano, isto é, um meio criador de indiferença e anomia - correspondendo, por agora, ao mais vistoso e ao mais dominante -, e um outro, tanto no Litoral quanto no Interior, que vai persistentemente constituindo a excepção, uma espécie de peças de resistência que bem procuradas estão por aí. Parece-nos bem, no dia de hoje, premiar aqueles que alinham neste segundo grupo. Esta, pelo menos, foi a nossa íntima convicção.
Resta-me desejar para este Prémio, longa vida. Tanta e tão longa, e tão bem cumprida nos seus propósitos, que um dia ninguém precise de contar, numa sessão semelhante, episódios como aquele que referi em relação àquela antiga casa que tinha amendoeiras. Que no futuro, em termos de Arquitectura e Urbanismo, Ambiente e Paisagem, tudo sejam cravos vermelhos."
Texto dito pela escritora, no dia 25 de Abril, na entrega do Prémio Bienal de Arquitectura e Urbanismo, instituído pela Câmara Municipal de Loulé e de cujo júri fez parte.
Fonte:
http://www.publico.clix.pt/
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